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Tese mostra que a cultura brasileira
fornece clichês que retratam o país
em filmes estrangeiros

Paulo Moreira Leite

Todo mundo sabe como os povos são retratados no cinema. O mexicano aparece sonolento, sempre embaixo do sombreiro. O italiano é romântico, meio ingênuo, tagarela. Depois da II Guerra, o alemão se tornou durão, rígido, um pouco bobo. Já o francês é romântico, artista, superficial. Há dois anos, em Paris, o professor Antonio Carlos Amancio da Silva, da Universidade Federal Fluminense, resolveu pesquisar a imagem do Brasil no cinema estrangeiro. Amancio leu mais de 3.000 sinopses, assistiu a 202 filmes e escreveu uma tese de doutorado: "Em busca de um clichê – panorama e paisagem no cinema estrangeiro". 

O levantamento do professor mostra aquilo que se sabe: seja em obras do início do século, como O Terrível Brasileiro, filme francês de 1909 que tratava de um triângulo amoroso; seja em Carmen Miranda, estrela que nasceu badulaque de exportação mas ganhou vida própria nos anos 40 e 50; seja ainda em produções da linha pornô-chique, no estilo Emmanuelle 4, o que se vê na tela sobre o Brasil é um desfile de clichês e estereótipos. Essas duas palavras são feias, mas não custa lembrar que guardam idéias condensadas sobre lugares e pessoas. O cinema estrangeiro repete que somos um país habitado por uma gente simpática mas muito pobre, com antepassados canibais e mulatas irresistíveis, que segue religiões primitivas e pratica danças pitorescas, num lugar onde a natureza é deslumbrante mas as leis não funcionam. No pacote de obras estudadas, o professor recolheu as maiores amostras de quem faz mais filmes. Examinou 88 americanos, 43 franceses, dezenove italianos e dezesseis ingleses, além de outros menos numerosos. 

Escrita em "academês" moderado, a tese contém um belo ensinamento ao rastrear a mitologia que compõe a imagem externa do país. Amancio demonstra que esses clichês, que são capazes de irritar mesmo quando se admite que contêm um fundo de verdade, não nasceram em laboratório -- mas têm como fonte de inspiração nossa própria cultura, num mecanismo que permite ao cinema estrangeiro desenhar o Brasil a partir de modelos que os próprios brasileiros oferecem. Em um terço dos filmes estudados, Amancio encontrou paisagens deslumbrantes, mulheres sensuais, população um tanto ingênua. Em Meu Amor Brasileiro, de 1953, a americana Lana Turner sente-se "diferente" assim que desembarca no Rio de Janeiro, "como se algo maravilhoso fosse acontecer. Há qualquer coisa no ar". Uma década depois, aprende-se que "isto aqui é o paraíso: mulheres, álcool e música", como diz um personagem de O Homem do Rio, filme de 1964, com Jean-Paul Belmondo. Essa visão de país deslumbrante e sensual não é nova e seduz grandes intelectuais que estudaram o país durante este século. Mas sua primeira versão encontra-se na Carta do Descobrimento, de Pero Vaz de Caminha. "É dele o primeiro olhar europeu sobre o Brasil," explica Amancio. "Essa visão ficou, para estrangeiros e para brasileiros." 

No início do século XIX, artistas que integravam missões estrangeiras não se cansaram de retratar a Baía de Guanabara, cenário onde vivia a família real portuguesa. Em 1889, Vitor Meirelles causou sensação na Exposição Universal de Paris ao mostrar a mesma paisagem em tela panorâmica. Exibida na então capital do mundo, num momento em que as máquinas culturais do século XX começavam a ser ligadas, a Baía de Guanabara transformou-se na imagem oficial do Brasil. "Foi ali que nosso país foi inventado para as platéias internacionais", diz o professor. "Nenhuma outra paisagem brasileira seria tão filmada na história do cinema." Em 1946, em Interlúdio, com os atores Cary Grant e Ingrid Bergman, o diretor Alfred Hitchcock fez uma história de suspense que caberia em qualquer lugar. Mas o filme tinha o charme especial de mostrar Copacabana e caprichar num detalhe – Ingrid Bergman é envenenada tomando uma xícara de café brasileiro. O exotismo, marca de boa parte das produções estrangeiras sobre o Brasil, não é gratuito – funciona como atrativo adicional para platéias sempre ávidas por novidade. 

Nas aventuras policiais, uma cena é comum: se marginais americanos gostam de fugir de automóvel para o México, os bandidos europeus de alto gabarito preferem tomar um avião para o Rio. Estrangeiros honestos, em viagem pelo país, também correm o risco de ser vítimas do ambiente fora-da-lei. "Será que eles não têm leis no Brasil?", pergunta Tom Hanks em Um Dia a Casa Cai. Tanto é verdade que a maioria das pessoas enxerga a impunidade como característica do cotidiano brasileiro que esse tipo de comentário não provoca protesto nem incredulidade nas platéias – só ajuda a divertir. O inglês Ronald Biggs, assaltante do trem pagador, mito criminoso número 1 da Inglaterra no pós-guerra, não apenas escolheu o Brasil para viver ao fugir da polícia. Foi além. Em 1989 participou de um filme para mostrar como a vida era boa no Rio. A descoberta, no início da década passada, de que o criminoso nazista Josef Mengele vivera escondido no Brasil só veio confirmar, como notícia da vida real, aquilo que as platéias haviam visto numa obra de ficção, Os Meninos do Brasil, best-seller levado ao cinema em 1978 com Gregory Peck no papel principal. Amancio conta que estava no meio da pesquisa quando descobriu que a chave para decifrar clichês e estereótipos se encontra em referências históricas – a origem dessa visão sobre impunidade está nos degredados da colonização portuguesa. "Você vai separando as figuras do cinema e vê que elas têm correspondência com algum personagem real", explica. 

Zé Carioca não é uma invenção de Walt Disney. Hollywood colocou o charuto em sua boca e o mandou morar numa favela de morro do Rio. Mas os papagaios são atrações do Brasil desde as primeiras caravelas portuguesas. Eram disputados por contrabandistas e, como sabiam imitar a fala humana, chegavam a ser tratados como aves sagradas. Examinando trabalhos de categoria tão diversa, Amancio encontrou um serviço de primeira, de um cineasta capaz de procurar um país verdadeiro por trás da casca de estereótipos. É o francês Marcel Camus, que filmou Orfeu Negro, com base em poema de Vinicius de Moraes e música de Tom Jobim. Orfeu Negro faturou o Oscar de filme estrangeiro e também o Festival de Cannes. Lançou Vinicius no circuito europeu e firmou o tripé do mais vigoroso mito cinematográfico do Brasil: negro, favela e música. Mais tarde, Camus ainda filmaria Os Bandeirantes, em que produziu imponentes imagens da fundação de Brasília, e Otalia da Bahia, baseado em Jorge Amado. "Com clichês ou não, nenhum cineasta estrangeiro filmou nosso país com tanto empenho e com tanto amor", diz Amancio.

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