Somos hermanos
Concorrência muda o perfil
da TV mexicana, que está cada
vez mais semelhante à brasileira
Ricardo Valladares, da Cidade do México
No início da década de 90, um fantasma assombrava a televisão
brasileira – o da "mexicanização".
Muitos críticos acreditavam que o sucesso dos dramalhões toscos e dos
programas mambembes importados do México serviria de pretexto para
nivelar por baixo a produção do país. Quase dez anos depois, o termo
"mexicanização" soa como preconceito e simplificação
grosseira. Não só educadores descobriram virtudes insuspeitadas em
programas como o infantil Chaves ,
reprisado há séculos por aqui, como se percebeu que, descontadas as
pirotecnias, novelas como A Usurpadora, em cartaz no SBT, talvez
não sejam assim tão piores do que o grosso da orgulhosa
teledramaturgia nacional. Ao dar uma espiadela no que ocorre atualmente
entre os hermanos, verifica-se ainda que a palavra "mexicanização"
deixou de ser sinônimo de imobilismo. A televisão no México está
mudando. Ela anda cada vez mais parecida com a brasileira, embora nenhum
mexicano fale em "abrasileiramento" da produção local.
Assim como aconteceu aqui, as novelas daquele país começaram a
tratar de assuntos atuais, perdendo a atemporalidade e o moralismo
tacanho que tanto incomodavam os críticos dos dramalhões. A
infidelidade no casamento, por exemplo, é abordada de uma perspectiva
moderna em Três Mulheres, ainda em cartaz. Vida no Espelho
traz pela primeira vez um personagem homossexual. As eleições
presidenciais são o tema do folhetim político El Candidato. Alma
Rebelde, em projeto, discutirá a sexualidade adolescente. E
programas para jovens, como No Fim de Semana, tomaram espaço dos
shows de auditório com apresentadores veteranos. Outra semelhança com
o Brasil são as discussões que acontecem por lá. Até recentemente, o
grande assunto na mídia eram as cenas fortes mostradas nos programas Cidade
Nua e Fora da Lei, semelhantes ao Cidade Alerta brasileiro,
e as brigas mediadas por Cristina, versão local de Márcia
Goldschmidt. A polêmica durou até que os canais locais resolveram
"suavizar" o conteúdo dessas atrações, por pressão do
governo.
Uma comparação das duas televisões mostra que ambas bebem na fonte
americana no que se refere aos programas que exploram o mundo cão. E
que, nas demais áreas, a troca de informações entre Brasil e México
é praticamente nenhuma. Novelas brasileiras, aliás, raramente passam
naquele país. A última foi Pantanal, em 1997, que não
conseguiu cativar o público. O que causou mudanças na TV mexicana foi
um fator externo aos caprichos de roteiristas e diretores. Ele se chama
concorrência, o mesmo bicho-de-sete-cabeças que atormenta o pessoal
daqui. No Brasil, a ascensão de emissoras como o SBT e a Record forçou
a programação da Globo a adquirir um novo perfil. No caso do México,
a entrada no mercado da TV Azteca trouxe ares novos, encerrando um monopólio
de mais de quarenta anos da Televisa. Eis por que os dois estilos
acabaram convergindo.
Terremoto – Até 1993, os
quatro canais da Televisa, de propriedade da poderosa família Azcárraga,
detinham 90% da audiência nacional e 100% da verba publicitária
destinada à televisão. As emissoras restantes eram todas estatais. Foi
quando sobreveio um terremoto: o empresário Hugo Salinas Rocha, que fez
fortuna no ramo dos eletrodomésticos, conseguiu contornar toda sorte de
dificuldades políticas e ganhou a concessão de dois canais. De posse
deles, fundou a TV Azteca, que hoje abocanha 30% dos telespectadores do
país. Para chegar a esse resultado impressionante, apostou-se nos
caminhos já elencados: as novelas com enredos mais contemporâneos,
atrações de auditório menos modorrentas e programas de baixarias ao
estilo do americano Jerry Springer. Essa linha de atuação foi definida
pela diretora de programação da TV Azteca, Elisa Salinas, filha de
Hugo, que morreu em 1997. "Programa bom é aquele que deixa
dinheiro no caixa", ensina a morena de lábios carnudos, que só
anda de BMW blindado e cercada por um time de até oito seguranças.
O crescimento da TV Azteca obrigou a Televisa a se mexer. Há três
anos, eles nem sequer faziam pesquisas para saber o que seu público
queria. Insistiam no mesmo modelo de novela, herdado do rádio. O
sucesso das primeiras produções da nova emissora demonstrou que havia
outras demandas do público. Para acompanhá-las, a Televisa inaugurou,
em 1996, seu departamento de pesquisas. Isso mudou radicalmente seu modo
de fazer novelas. Antes, elas seguiam fielmente as sinopses originais até
o fim. Agora, mudam o tempo todo, em função dos humores dos
telespectadores. As pesquisas são parecidas com as que são feitas no
Brasil. Reúne-se um grupo de pessoas representativas dos diversos
segmentos da sociedade para discutir a novela. Atrás de um vidro
espelhado fica o produtor do folhetim, que observa tudo e anota o que
foi dito de mais interessante. Eles levam tão a sério as pesquisas que
nem os grandes astros estão imunes a elas. A atriz mais bem paga do México
é Thalia Ariadna, protagonista da trilogia Maria do Bairro, Maria
Mercedes e Marimar, que recebe 1,5 milhão de dólares por
ano. Sua nova novela, Rosalinda, no entanto, não emplacou. De
acordo com as sondagens, o público, acostumado a vê-la no papel da
menina pobre que se casa com o príncipe encantado, não aprovou sua
personagem, uma moça rica de nascença. A emissora não teve dúvidas:
diminuiu o papel de Thalia na novela e mudou o par romântico central,
colocando até um novo galã em cena.
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Um ponto lê as falas para os atores.
Na escola de interpretação, alunos aprendem até a chorar |
Linha de montagem – Thalia,
hoje de casamento marcado com Tommy Motolla, executivo da Sony Music e
ex-marido da cantora Mariah Carey, é uma exceção. Em geral, os salários
dos atores mexicanos do primeiro time ficam na faixa dos 25.000
dólares, ou 50.000 reais, que é mais ou
menos o mesmo padrão brasileiro. Têm de enfrentar, no entanto, uma
competição bem mais selvagem. São raros, no México, casos como o de
Tarcísio Meira e o de Antonio Fagundes, que continuam com o prestígio
alto mesmo após romper a barreira dos 50 anos. "Aqui, é difícil
uma novela ter em cena um protagonista com mais de 40 anos",
lamenta-se o ator Leonardo Daniel. Recém-chegado a essa idade, ele
abandonou a Televisa depois de 24 anos de casa. Sentia-se subaproveitado.
Verônica Castro, estrela nos anos 70 e 80 e atriz principal da antológica
Os Ricos Também Choram, encontra-se sem contrato. É como se Glória
Menezes estivesse aposentada.
Apesar de todas as inovações de conteúdo, a produção de novelas
no México continua a ter ritmo de linha de montagem. São produzidas
cerca de 28 por ano, quatro vezes mais do que o número de folhetins
veiculado pela Globo. Em cada uma, são utilizados cerca de 150
atores, contando com os figurantes, quase quatro vezes mais que uma
produção brasileira. Só a Televisa chega a manter 4.500
sob contrato, dez vezes mais que a rede de Roberto Marinho. Lá, ao
contrário do que acontece no Brasil, um ator não pode recusar papel.
É demitido. Nem pedir aumento. Há um ano, o protagonista de Diário
de Daniela, o galã uruguaio Marcelo Bouquet, estava abafando.
Resolveu, então, solicitar um reajuste de 8.000
para 13.000 dólares por mês. Foi
sumariamente degolado do elenco. O corte não alterou a audiência da
novela. "Ator não traz público. Quem traz público são os
autores que criam boas histórias", pontifica um executivo da
Televisa.
Para alimentar a demanda de atores, a emissora líder criou uma
escolinha de telenovela. Ela é dirigida pelo produtor Eugenio Cobo Peña,
de 60 anos. Todo ano, cerca de 5.000
pessoas, de vários países da América Latina, disputam acirradamente
as 35 vagas da escolinha. Quem passa nesse funil recebe uma ajuda de
custo mensal de 150 dólares e faz um curso de três anos que compreende
aulas de interpretação, dança, balé, luta, história da arte,
fonoaudiologia e choro. Sim, choro é matéria essencial para um bom
desempenho em novelas mexicanas. Assim como a boa estampa, claro. Moças
com um pezinho na peruíce saem em vantagem. E se tiverem um diploma de
miss, então, nem se fala. A estonteante Danett Velasco, 21 anos, 1,78
metro, 54 quilos, será a representante mexicana no próximo concurso de
miss Universo. Esse era o principal ponto de seu currículo quando se
apresentou como candidata à escolinha do professor Peña. Foi aprovada.
"Estou orgulhosa, porque soube que é mais difícil passar nesse
teste do que no vestibular para medicina", vangloria-se ela. Danett
segue os passos da protagonista de Inferno no Paraíso, a
venezuelana Alicia Machado, que foi contratada depois de ter triunfado
no concurso de miss Universo.
Ponto eletrônico – A Venezuela
forneceu também a mais nova estrela da televisão mexicana, Gabriela
Spanic. Seu salário é outra prova de que alguns atores fazem, sim,
diferença. A protagonista de A Usurpadora embolsa 40.000
dólares por mês. Além do salário gordo, a Televisa lhe paga o
aluguel de uma belíssima casa num dos bairros nobres da Cidade do México.
Corre ainda por conta da emissora o carro com motorista, um Lincoln
Continental, mesmo modelo com que Silvio Santos circula pelas ruas de São
Paulo. Como não poderia deixar de ser, Gabriela considera A
Usurpadora um "desafio". Na novela, a atriz se desdobra no
papel de gêmeas, uma santa, outra vilã. "Sempre que vou
interpretar Paulina, a boa, rezo um padre-nosso e entro na
personagem", diz. "Já para fazer Paola, a má, mexo com os
chacras de baixo, despertando a sensualidade que vem de dentro."
Nem o inglês Laurence Olivier encarava a arte dramática com tanta
seriedade. Na semana passada, a atriz esteve no Brasil para divulgar A
Usurpadora e se espantou com as diversas subtramas das novelas
brasileiras. "Aqui vocês têm protagonistas demais",
observou.
Outra peculiaridade é que ator de novela mexicana não tem de
decorar o texto. Há alguns anos, entrou em cena o ponto eletrônico. No
Brasil, tal artifício é utilizado apenas em programas de auditório,
para que o diretor possa estender a participação de uma atração que
esteja dando audiência ou encurtar aquelas que não alcançam bom
ibope. Na Televisa, todos os atores usam. Dentro de uma salinha, sentado
diante de um monitor, um funcionário é encarregado de transmitir aos
atores as falas. "Enquanto se escuta o ponto, é muito difícil
prestar atenção no que o outro ator está falando", reclama
Hector Soberon, que participou de Maria do Bairro. Nem sempre o
recurso é garantia de que nada dará errado numa gravação.
Recentemente, uma atriz disse, em prantos, para o galã: "Saia de
cena!" Estava, na verdade, repetindo uma rubrica que ouviu pelo
ponto.
O humor chulo é uma das vertentes que ganham fôlego na televisão
mexicana. Até há pouco tempo inexistentes, atrações com piadas de
duplo sentido e mulheres de pouca roupa são veiculadas a partir das 10
da noite. Nesse horário, dizem as pesquisas, a maioria do público é
composta de adultos do sexo masculino. "À noite, no México, é o
homem quem manda no controle remoto", informa Rosa Ocampo, diretora
de projetos da Televisa. Zero em Comportamento, em cartaz há um
ano e maior audiência no gênero, é praticamente idêntico à Escolinha
do Barulho. Outro sucesso recente, nessa linha, foi o da comediante
María Elena Saldaña, muito parecida fisicamente com a brasileira
Gorete Milagres. Ela viveu um período de extrema popularidade, ganhou
um programa próprio e depois saiu do ar porque a audiência caiu. Ô,
coitada.
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